Prevenção é fundamental para diminuir mortes por doenças cardiovasculares, inclusive em mulheres
11/02/2021, 11:53 • Atualizado em 21/12/2023, 17:30
Compartilhar
Para a cardiologista Gláucia Maria Moraes de Oliveira, aumento da participação feminina nas pesquisas, melhorias socioeconômicas da população e conscientização sobre os fatores de risco mostram-se eficientes para a redução de eventos graves, como infarto e AVC
Até pouco tempo, havia um mito de que problemas do coração eram próprios dos homens. Uma realidade que se alterou bastante nas últimas décadas. Com a mudança no estilo de vida, as mulheres passaram a exercer um novo papel, o que representou importante conquista do sexo feminino para a sociedade. Por outro lado, trouxe consequências diretas à saúde, com aumento do risco e problemas cardíacos.
Atualmente, as doenças cardiovasculares em mulheres já ultrapassam as estatísticas de câncer de mama e de útero. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as doenças cardiovasculares respondem por um terço das mortes de mulheres no mundo, com 8,5 milhões de óbitos/ano, ou seja, mais de 23 mil mulheres por dia. Entre as brasileiras, principalmente acima dos 40 anos, as cardiopatias chegam a representar 30% das causas de morte, a maior taxa da América Latina.
De acordo com a cardiologista Gláucia Maria Moraes de Oliveira, coordenadora de Acompanhamento da Gestão e Controle Interno da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), este índice mostra que, embora as mulheres já tenham se conscientizado sobre a importância da realização de exames preventivos para a detecção de doenças ginecológicas e do câncer de mama, por exemplo, ainda cuidam pouco da saúde do coração.
“Existe um senso comum que as mulheres não têm problemas cardíacos, o que é uma inverdade. Hoje, a morte por doença cardiovascular está igual para os dois sexos, em cerca de 30%. É necessário conscientizar as mulheres que as doenças cardiovasculares representam o dobro das mortes por todas as neoplasias associadas. Esse fato se reveste de maior importância pelo envelhecimento e adoecimento da população feminina”, destaca.
A explicação, segundo Gláucia, pode ser porque a mulher tem dupla e até tripla jornadas, ao se dividir entre o trabalho, cuidado com os filhos e afazeres domésticos. Isso eleva o estresse, associado, muitas vezes, à falta de atividade física, má alimentação, tabagismo e consumo em excesso de bebidas alcoólicas.
Somado a esses fatores há um problema adicional: as mulheres jovens têm maior prevalência de doenças cardiovasculares do que os homens. O estudo feito a partir dos dados da plataforma on-line Estatísticas Cardiovascular Brasil: 2020, da SBC, mostrou que a predominância dessas enfermidades é muito maior nas mulheres entre 15 e 49 anos e que vem aumentando as mortes por doenças isquêmicas, como o infarto do miocárdio, nas mais jovens.
“Essa é uma tendência mundial e as razões podem ser muitas, incluindo a falta de conscientização e orientação sobre esses problemas, questões socioeconômicas e aumento de fatores de risco, como tabagismo, obesidade e diabetes. Ainda tem o fato de as mulheres estarem sob um estresse maior e por mais tempo, devido ao excesso de atividades e porque elas tendem a querer dar conta de muitas tarefas simultaneamente em sua rotina diária. Somado a isso, os sintomas nelas podem ser resumidos a uma dor mais genérica e de difícil diagnóstico, o que faz com que muitas sequer procurem ajuda médica ou não sejam tratadas corretamente”, explica a cardiologista, que lembra que é preciso ficar atento aos sintomas do infarto, que no sexo feminino são, em muitos casos, diferentes da clássica dor no peito relatada por homens, como náuseas, vômitos, dor nas costas e no pescoço, falta de ar e indigestão.
Algumas hipóteses para essa diferenciação nos sintomas são as características biológicas, como a variação hormonal que ocorre na gestação e que pode agravar problemas já existentes; a negação ou subestimação do problema, causando atraso no tratamento; uma maior resistência à dor; fatores físicos e psicológicos, entre outros.
Todas essas informações demandam uma conscientização em massa, na visão de Gláucia, principalmente porque sabe-se que é possível prevenir 80% das mortes prematuras por doenças cardíacas com algumas medidas simples.
“Devemos implementar ações de prevenção primária e conscientizar a população sobre os sinais e sintomas dessas doenças nas mulheres. Essa prevalência faz com que nós precisemos fazer campanhas para o público jovem também, não somente para a população que está na menopausa”, alerta.
Além disso, há uma grande assimetria no conhecimento e no cuidado das doenças cardíacas no sexo feminino, o que leva a uma probabilidade de a mulher morrer de infarto até 50% maior quando comparada à dos homens.
Para a especialista, é importante ressaltar que a maioria dos ensaios clínicos realizados para o tratamento das doenças cardiovasculares foram realizados com pouca representatividade feminina. Assim, é preciso estimular estudos que sejam feitos para e por mulheres, para aumentar a participação delas nas pesquisas clínicas a fim de que se consiga melhores diagnósticos e tratamentos adequados para enfrentar as doenças cardiovasculares nelas com mais eficiência.
Presença feminina na cardiologia
Para mudar este cenário, Gláucia, que também é coordenadora da Programa de Pós-Graduação (PPG) de Cardiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e editora associada de Cardiologia Clínica das revistas Arquivos Brasileiros de Cardiologia (ABC Cardiol) e International Journal of Cardiovascular Sciences (IJCS), da SBC, defende maior presença feminina na cardiologia e na liderança de estudos clínicos e a necessidade de mais atenção com a saúde cardiovascular das mulheres.
Ela revela que dos atuais 16 mil cardiologistas no país, apenas cerca de 30% são do sexo feminino, que é preciso chamar as mulheres para cuidar do coração da população brasileira. “São poucas mulheres envolvidas no cuidado do coração. Além disso, o número de médicas na situação de líderes é pequeno. Precisamos que as elas se envolvam e participem mais”, afirma a cardiologista.
Gláucia aponta que as mulheres estão mais presentes no setor acadêmico público, onde 53% das profissionais são do sexo feminino, e menos na iniciativa privada. Mas se for contar as mulheres como primeiras autoras dos artigos científicos, esse índice cai para 30%.
“Apesar de nós pesquisarmos iguais, temos muito mais homens liderando essas publicações”, relata a coordenadora da SBC, que também lamenta o fato das médicas e pesquisadoras terem remuneração muito inferior à dos homens. “Se você considerar um corte que foi feito pela demografia médica, os homens ganham dez vezes mais do que as mulheres ocupando os mesmos cargos e demandando o mesmo tempo de trabalho. As cardiologistas precisam se movimentar para tentar mudar esse cenário”, aponta.
Desafios da prevenção
As doenças cardiovasculares são um problema de saúde pública, não só no Brasil, mas no mundo, que possui mais de meio bilhão de indivíduos com essas enfermidades. No país, são 14 milhões de brasileiros acometidos por doenças cardíacas. O problema é grave porque essas doenças, principalmente o infarto, são responsáveis por mais de 30% das mortes no Brasil. Uma mortalidade de 380 mil brasileiros todos os anos.
“São números muito fortes que falam por si sobre a necessidade de políticas públicas capazes de mudar esse cenário. A pandemia do novo coronavírus agravou essa situação, que já era dramática, e reforça a necessidade de fortalecer o sistema público de saúde”, ressalta Gláucia Oliveira, para quem o maior desafio da cardiologia é reduzir os óbitos por doenças cardíacas. “A transição demográfica traz impactos a uma situação já desfavorável e com a população envelhecendo, tende-se a aumentar a incidência das doenças cardiovasculares e outras enfermidades, como as doenças degenerativas das válvulas cardíacas”, explica.
Um dos caminhos para superar esses desafios é, de acordo com a coordenadora da SBC, ampliar o desenvolvimento em pesquisa. Para ela, o primeiro passo é usar os dados que se possui dos Indicadores de Desenvolvimento Humano (IDH) para entender a condição de vida da população e o quanto ela impacta nos fatores de risco das doenças cardiovasculares. “É possível evitar essas enfermidades controlando os fatores de risco que estão relacionados com a condição de vida da população. Quem tem menos condições de moradia, de trabalho e de educação, também tem menos informação e acesso a uma alimentação saudável, à prática de atividade física e hábitos saudáveis”, alerta a cardiologista.
Para Gláucia, os resultados da incidência e de mortes por doenças cardiovasculares serão piores se houver a preocupação apenas em controlar fatores de risco, como pressão arterial, diabetes e colesterol, do que se melhorar a condição de vida, alimentação e educação da população brasileira. “Justiça social é a grande receita para melhorar a vida e proporcionar mais saúde para a população de um país continental como o nosso, com tanta heterogeneidade”, afirma.
A cardiologista acredita que para mudar o panorama atual é preciso mais investimentos na prevenção dos fatores de risco modificáveis na população sadia e nos que já possuem alguma comorbidade e mudar a maneira de atuar na saúde pública, para evitar a evolução das doenças crônicas não transmissíveis e o aumento dos eventos cardiovasculares graves que podem levar à morte.
Há 15 anos como professora permanente da Pós-Graduação de Cardiologia da UFRJ, Gláucia é entusiasta da pesquisa científica e acredita que a busca por novas formas de tratamento com menos recursos e mais abrangente é o caminho para o enfrentamento das doenças cardiovasculares. “Viabilizar estudos clínicos e investir em pesquisas são fundamentais para alcançarmos melhores resultados”, garante.
Ela comemora os bons resultados alcançados pelos pesquisadores brasileiros durante a pandemia, a convergência das agências financiadoras – o que permitiu a captação de recursos para grupos de pesquisa com grandes projetos – e os financiamentos internacionais, como o feito pela Fundação Bill e Melinda Gates.
“A Covid-19 fez voltarem os olhos para a pesquisa em saúde. O mundo percebeu que precisa valorizar os profissionais de saúde e os pesquisadores para que a sociedade possa enfrentar o novo coronavírus”, destaca Gláucia, salientando que “a falta de incentivo à iniciação científica, de jovens pesquisadores e a evasão de cientistas para outros países não pode impedir que a comunidade científica seja, cada vez mais, atuante nas políticas de saúde pública e na divulgação clara e acessível do papel da ciência na saúde e na vida das pessoas.”