O adeus a Radi Macruz, um dos pais da cardiologia moderna no Brasil
01/12/2020, 15:44 • Atualizado em 21/12/2023, 17:30
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Um dos grandes ícones da cardiologia nacional, marcou época quando ela começava a se firmar como especialidade médica,
teve um papel fundamental na consolidação da SBC
A cardiologia brasileira perdeu ontem (30/11) um de seus principais nomes. O professor adjunto do Departamento de Cardiopneumonologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Radi Macruz, deixou-nos um legado de inovação e centenas de discípulos que, certamente, seguirão perpetuando seus conhecimentos.
Ele nasceu em São Paulo, em 5 de julho de 1925. Foi graduado pela FMUSP, pioneiro em várias áreas da cardiologia e um dos idealizadores do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da FMUSP.
“O professor Radi Macruz é um dos grandes ícones da cardiologia brasileira. Marcou época quando a especialidade começava a se firmar na área médica. Ele já era um pesquisador de ponta, formou uma geração de médicos muito qualificados e, juntamente com os professores Euryclides de Jesus Zerbini e Luiz Venere Décourt, teve um papel fundamental na consolidação da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC)”, disse o presidente da entidade, Marcelo Queiroga.
A SBC lamenta a perda, mas Queiroga reitera que o consolo se dá pela vida longa que o professor Macruz teve, onde pôde realizar tudo aquilo quanto quis fazer quer seja como docente, médico e, sobretudo, como homem.
“Dr. Macruz deixa o legado da ciência, uma pessoa que acreditava no conhecimento científico, era um pesquisador de vanguarda e que até se antecipou ao que temos hoje. Ele também era um grande humanista, um médico que dava extrema atenção aos pacientes, realizando uma medicina humanizada”, afirma o presidente da SBC.
Radi Macruz era casado com a professora Valéria Bezerra de Carvalho que tinha, ao lado dele, grande protagonismo. Ela recebeu em 2020 a homenagem especial do Prêmio Mérito SBC por sua relevante contribuição à cardiologia brasileira nas áreas da assistência, ensino, pesquisa e associativa, sendo uma personalidade marcante e um referencial a todos os profissionais de medicina.
Segundo a professora Valéria Bezerra de Carvalho, uma das contribuições mais importantes que o professor Macruz estabeleceu foi o conceito de pressão normal no sistema cardiovascular publicado em livro com o mesmo nome e posteriormente a normalidade das variáveis do corpo humano, publicado no livro Matemática da Arquitetura Humana, onde afirma que “ tomar o normal estatístico ou populacional como normal individual é rejeitar a verdade... É opor-se à desconexão entre a normalidade laboratorial e normalidade física”. Além disso, destaca, outro trabalho de grande utilidade na prática clínica que ele desenvolveu, que é a relação entre localização de isquemia e dor cardíaca, publicada no livro Dor Cardíaca.
(Dr. Radi Macruz e Dr. Costantino Costantini)
“A vida nos deixa lacunas que são imensas, juntamente com a partida do Professor Décourt e Geoffrey Hartzler, perdi o último pilar da minha formação humanística. No momento em que o mundo está totalmente desumanizado, o que me resta? Seguir o caminho da decência, moral médica, e tentar nesses poucos anos que me restam seguir transmitindo o que aprendi. Estes mestres são insubstituíveis. Que sinto? Dor na alma”, lamentou o cardiologista e diretor-geral do Hospital Costantini, Costantino R. Costantini.
À FRENTE DO SEU TEMPO
Logo após formar-se em Medicina pela FMUSP, Radi Macruz ficou integrado ao setor de cardiologia do Hospital das Clínicas da instituição, compondo a equipe do professor Décourt. Dedicava-se às várias áreas da cardiologia, porém mais intensamente à cardiologia pediátrica e doenças congênitas do coração, tornando-se chefe da disciplina de Cardiologia, do Departamento de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
“O professor Macruz, na verdade, além de um excelente cardiologista, sempre teve ideias muito à frente do nosso tempo. Propunha inovações e, fora a atividade no Hospital das Clínicas, passou a trabalhar como cardiologista no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, integrado à equipe do professor Zerbini. Assim o fez até formar sua própria equipe, a qual possuía um volume extenso de atendimento de doentes”, fala o professor emérito da FMUSP, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular e do Conselho Diretor do InCor, Noedir Stolf.
Um ano antes de o sul-africano Christian Barnard realizar o primeiro transplante cardíaco do mundo, em São Paulo, o professor Radi Macruz solicitou à FMUSP autorização para realizar a cirurgia. Havia uma paciente com miocardiopatia de origem possivelmente virótica; um doador, vítima de atropelamento com morte cerebral; e a equipe inteiramente montada e motivada para a operação, mas não foi dada autorização. Alegou-se que havia impedimentos filosóficos e morais em relação à morte cerebral.
O inusitado na proposta de transplante de Radi Macruz é que ela não partiu de um cirurgião, mas de um cardiologista clínico. Ele passou a vida tão envolvido com procedimentos cirúrgicos que, uma vez, Adib Jatene explicou porque um clínico fazia parte da mesa em uma reunião de cirurgiões: “Macruz é um dos pais da cirurgia cardíaca no Brasil”.
“Ele foi um grande clínico, uma grande liderança dentro da cardiologia brasileira, uma pessoa com ideias inovadores, avançadas para a época em que nós vivíamos. Era partidário de tratar de infarto do miocárdio na fase aguda, esse hoje é um conceito estabelecido desde que o doente consiga ser atendido prontamente. Naquele tempo, o professor propunha operar o doente na fase aguda porque havia um grande receio de que o infarto pudesse sofrer alguma hemorragia”, explica Stolf.
O professor emérito da FMUSP diz que o legado de Macruz é todo o conhecimento na área de cardiologia pediátrica e cardiopatias congênitas, além de uma geração de profissionais que aprenderam a caminhar com ele. Outra marca é não se acomodar com o que se tem estabelecido, procurando sempre novas formas de tratamento, diagnóstico e propor novos métodos de avaliação e análises.
ÍCONE DA CARDIOLOGIA BRASILEIRA
“Eu acho que hoje muitos adultos que foram crianças cardiopatas têm uma vida normal por causa do professor Macruz e da equipe que ele formou. Ele era inteiramente dedicado à medicina, com grande senso de visão do futuro daquilo que precisaria ser feito. Eu o considero um ícone da cardiologia brasileira, da pediatria especialmente, mas não apenas. Tinha grande conhecimento de valvulopatia, miocardiopatia e doença coronária. Foi uma pessoa que realmente ensinou muitas gerações. A cardiologia brasileira toda deve muito a ele. Foi uma pessoa de muito peso, de muito conhecimento”, ressalta o professor titular sênior de Cardiologia do InCor/FMUSP, Protásio Lemos.
Para ele, o principal legado de Macruz é a organização do serviço de cardiologia pediátrica no InCor e que serviu para disseminar esse conhecimento pelo Brasil inteiro e pela América Latina.
“Professor Macruz sempre procurou entender bem fisiopatologia das doenças congênitas. Em uma época em que não tínhamos tantos recursos como temos hoje, como tomografia, ressonância magnética e ultrassom com grande capacidade. Ele exerceu fisiopatologia pediátrica em um exercício baseado em história clínica e ausculta. O conhecimento clínico dele era extraordinário”, finaliza Lemos.
FEITOS
- Propôs a realização de um transplante cardíaco em São Paulo, um ano antes de o sul-africano Christian Barnard realizar a primeira cirurgia do mundo;
- Sua equipe fez a primeira cirurgia cardíaca de infarto do miocárdio;
- Autor do trabalho que culminou na introdução do laser na desobstrução da artéria coronária, iniciativa inédita no mundo;
- Para Adib Jatene: “É um dos pais da cirurgia cardíaca no Brasil”;
- Trouxe, em 1970, para o Brasil o primeiro ecocardiógrafo da América do Sul. Levou-o para a Beneficência Portuguesa onde, sob sua orientação, uma equipe preparou, em três meses, 13 trabalhos científicos apresentados no Congresso da SBC;
- Mereceu o primeiro voto de louvor para uma tese de doutoramento na Faculdade de Medicina da USP;
- Concluiu a construção do InCor, então parte do Hospital das Clínicas, em apenas seis meses.
HOMENAGEM
Para expressar sua gratidão ao seu mestre Luiz Venere Décourt, Radi Macruz o imortalizou neste poema de sua própria autoria:
Décourt
O que um filho diria de um pai?
O que um discípulo falaria de seu mestre?
O que uma criatura poderia falar de seu criador?
O que eu poderia falar de Décourt?
Que
Poucos são os mestres que festejam a glória de seus discípulos.
Décourt é um deles.
Poucos os que se dedicaram totalmente a ensinar,
Esquecendo-se de suas necessidades materiais.
Décourt é um deles.
Poucos os que não se aproveitaram do corpo que ocuparam, utilizando-se dele
E dos pacientes para se elevarem.
Décourt é um deles.
Poucos os que beberam da fonte história
Para maior conhecimento, maior humanidade
E humildade.
Décourt é um deles.