História da estenose aórtica importante assintomática e impacto da intervenção precoce: metanálise

18/08/2020, 17:54 • Atualizado em 21/12/2023, 17:30

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  • Antônio Bacelar

Fundamentação: A estenose aórtica (EAo) representa uma das doenças valvares de maior prevalência e impacto clínico. A alta mortalidade condicionada pelo surgimento de sintomas faz da intervenção cirúrgica o principal pilar terapêutico para este momento de sua história natural. Todavia, os sintomas na EAo são precedidos por um longo período assintomático, caracterizado por baixa morbi-mortalidade (incidência de morte súbita inferior a 1% ao ano). A indicação de tratamento intervencionista na EAo importante assintomática costuma ser controversa, na medida em que o tratamento cirúrgico determina exposição dos pacientes a riscos de mortalidade superiores a 1%. Deste modo, conforme as mais recentes diretrizes de valvopatias, a indicação cirúrgica na EAo importante e sem sintomas baseia-se na identificação de complicadores como disfunção do ventrículo esquerdo (VE) e/ou preditores de mau prognóstico (área valvar < 0,7 cm2, gradiente transaórtico médio > 60 mmHg, velocidade máxima do jato aórtico > 5 m/s). O presente trabalho, na forma de meta-análise de 29 estudos prévios majoritariamente observacionais, objetiva revisitar a história natural da EAo importante assintomática, avaliando as taxas de mortalidade e de evolução para sintomas durante o período de tratamento conservador, além de pontuar o impacto da intervenção cirúrgica precoce em relação ao tratamento conservador (watchful waiting) e de explorar preditores de desfechos.

Metodologia: Meta-análise e revisão sistemática reunindo 29 estudos de história natural de EAo importante e assintomática. Além disso, 9 estudos foram incluídos na meta-análise comparando intervenção cirúrgica precoce com watchful waiting, sendo um deles trabalho randomizado e controlado. Os critérios de inclusão utilizados foram: (1) estudos que incluíram pacientes adultos com EAo importante, definida pela presença de pelo menos um dos seguintes parâmetros ecocardiográficos: área valvar < 1,0 cm2 (ou área valvar indexada < 0,6 cm2), velocidade máxima do jato aórtico > 4 m/s ou gradiente transaórtico médio > 40 mmHg; (2) estudos com pacientes exclusivamente assintomáticos, sem a obrigatoriedade da realização de teste de esforço para se confirmar a ausência de sintomas e (3) trabalhos que tiveram o registro de óbito durante o período de seguimento clínico, assim como documentaram a duração média desse seguimento. O desfecho primário selecionado foi mortalidade geral. Os desfechos secundários analisados para a meta-análise de história natural foram: mortalidade cardiovascular, incidência de morte súbita, morte por insuficiência cardíaca, surgimento de sintomas e necessidade de intervenção seja por cirurgia convencional ou através de implante transcateter de bioprótese aórtica (TAVR). Para a meta-análise de preditores, o desfecho primário era composto por mortalidade geral e intervenção valvar aórtica (ou desenvolvimento de sintomas).

Principais Resultados: 29 estudos observacionais foram incluídos na meta-análise de história natural, reunindo o impressionante número de 4075 pacientes com mediana de tempo de seguimento de 2,3 anos (intervalo interquartílico: 1,6 – 3,3). A taxa de mortalidade geral encontrada foi de 4,8 óbitos/100 pacientes/ano, com taxa de mortalidade exclusivamente cardiovascular de 3,0/100 pacientes/ano.

A incidência de morte súbita foi de 1,1/100 pacientes/ano. Com relação à progressão de doença, a taxa de necessidade de intervenção valvar durante o seguimento foi de 18,1/100 pacientes/ano. A análise multivariada identificou fatores independentes para mortalidade ou necessidade de intervenção valvar, destacando-se: sexo feminino, dislipidemia, diabetes, presença de doença arterial coronariana, impedância valvuloarterial, índice de massa do ventrículo esquerdo indexado, estresse global longitudinal do VE, velocidade máxima do jato aórtico > 4 m/s e área valvar aórtica < 0,6 cm2. Por sua vez, os 9 estudos que compararam intervenção precoce com tratamento conservador inicial incluíram 3094 paciente, com mediana de tempo de seguimento de 5,0 anos (intervalo interquartílico: 3,7-5,7). A análise comparativa entre as estratégias de seguimento demonstrou efeito protetor da intervenção valvar precoce em relação ao tratamento conservador, em termos de redução da mortalidade geral (HR 0,38, 95% IC: 0,25 – 0,58).

Conclusão: A EAo importante assintomática apresenta taxas não desprezíveis de mortalidade geral e cardiovascular na sua história natural, com evolução significativa para sintomas e necessidade de intervenção valvar. Maior gravidade anatômica da EAo, evidência de alteração estrutural do VE, EAo de baixo fluxo e fatores de risco ateroscleróticos são preditores de maior risco de morte ou necessidade de intervenção. Por esses motivos, a intervenção valvar precoce neste subgrupo de pacientes associou-se a menor mortalidade a longo prazo comparativamente ao tratamento conservador.

Impacto Clínico na Opinião dos Editores: a presente meta-análise indica que a fase assintomática da EAo anatomicamente importante não aparenta ser tão benevolente do ponto de vista clínico, especialmente quando preditores de alto risco estão presentes. A maioria dos estudos com essa população avalia exclusivamente as taxas de morte súbita (aproximadamente 1/100 pacientes/ano); todavia, nessa meta-análise observa-se que os índices de morte súbita representam apenas uma parte das mortes cardíacas que acontecem em pacientes com EAo importante assintomática, sendo as taxas de mortalidade geral e cardiovascular 4,8/100 pacientes/ano e 3,0/100 pacientes/ano, respectivamente. Mais ainda, o presente estudo identifica alguns preditores independentes de mortalidade e necessidade de intervenção valvar, destacando-se fatores de risco ateroscleróticos (diabetes, dislipidemia, doença arterial coronariana) e parâmetros ecocardiográficos de gravidade anátomo-funcional (impedância valvuloarterial, estresse global longitudinal do VE, área valvar muito reduzida). Por fim, ressalta-se o efeito protetor associado à intervenção cirúrgica precoce, com redução relativa de mortalidade de 62% comparativamente ao tratamento conservador (watchful waiting). Por esses motivos, embora sujeita a limitações inerentes, esta meta-análise destaca-se ao demonstrar que a história natural da EAo importante assintomática possui potencial relevante de morbi-mortalidade. Tais achados, combinados à profusão de modalidades terapêuticas menos invasivas como a TAVR, sinaliza a possibilidade de indicações mais liberais para intervenção valvar precoce neste subgrupo de pacientes, especialmente quando preditores de alto risco se apresentam. Entretanto, novos estudos prospectivos comparando as estratégias terapêuticas (intervenção precoce vs. tratamento conservador) ainda são necessários para sedimentação das indicações, as quais devem ser feitas de maneira individualizada e, sempre que possível, após discussão com o Heart Team.

Referência: Gahl B, Çelik M, Head SJ, et al. Natural History of Asymptomatic Severe Aortic Stenosis and the Association of Early Intervention With Outcomes: A Systematic Review and Meta-Analysis. JAMA Cardiol. Published online July 08, 2020. doi:10.1001/jamacardio.2020.2497.

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