A resposta que faltava: anticoagulantes na Covid-19
15/06/2021, 10:28 • Atualizado em 21/12/2023, 17:30
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- André Zimerman - Médico Internista e Residente de Cardiologia no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA); Doutorando em Cardiologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Quando pensamos que, finalmente, entendemos a Covid-19, o castelo volta a desmoronar, e novamente via ensaio clínico randomizado. A vítima da vez foi a anticoagulação em dose plena. Por ser uma doença protrombótica, a lógica simples permitia concluir que um anticoagulante melhoraria o prognóstico desses pacientes. As evidências até então eram equívocas. E eis que vem do Brasil o primeiro grande ensaio clínico que testou anticoagulação em dose plena como profilaxia em pacientes hospitalizados por Covid-19 moderada. O resultado, infelizmente, foi negativo; já a contribuição brasileira à ciência mundial e ao tratamento desses pacientes foi, de novo, bastante positiva.
O ensaio clínico multicêntrico ACTION randomizou 615 adultos hospitalizados por Covid-19 que apresentavam d-dímeros elevados para receberem anticoagulação em dose plena vs. dose profilática. A dose plena era de rivaroxabana (20 mg ou 15 mg 1x/dia), de enoxaparina (1 mg/kg 2x/dia) ou de heparina não-fracionada intravenosa até o 30º dia, enquanto a dose profilática era de heparina dose padrão durante a hospitalização. O estudo foi aberto, então os médicos conheciam o fármaco administrado, mas os avaliadores de desfechos eram cegados. O desfecho primário hierárquico era composto de (1) tempo até morte, (2) duração da hospitalização, e (3) duração de oxigênio suplementar, e foi analisado pelo método win ratio.
(O que é o win ratio? É um método que compara todos os pacientes do grupo A com todos os do grupo B, e verifica quem “ganha” cada enfrentamento. Por exemplo: se Arthur faleceu e Bruno sobreviveu até o final do estudo, Bruno “venceu” Arthur; se Alcemar e Bruno sobreviveram mas Alcemar permaneceu hospitalizado por menos tempo (somente 5 dias, enquanto Bruno ficou 30), Alcemar “venceu” Bruno. Ao final de todas as comparações, computa-se quantas vezes cada grupo “venceu”, e se faz uma divisão simples. No ACTION, uma razão >1 refletia mais vitórias para o grupo da anticoagulação plena.)
Os participantes incluídos foram, em sua maioria, homens (60%) não tabagistas (81%), com idade média de 57 anos e IMC médio de 30 kg/m2. Esses pacientes foram randomizados 10 dias após o início dos sintomas, com 2 dias de internação hospitalar, e 94% apresentavam-se clinicamente estáveis em leito de andar.
O desfecho primário hierárquico de tempo até morte, duração da hospitalização e duração de oxigênio suplementar não foi diferente entre os dois grupos. Ao término do estudo, houve 28.899 (34,8%) vitórias do grupo dose terapêutica vs. 32.288 (41,3%) vitórias do grupo dose profilática, que resultaram em um win ratio de 0,86 (IC 95% 0,59-1,22, p=0,40). Não houve diferença significativa em qualquer dos componentes do desfecho primário, mas em todos houve mais vitórias no grupo da anticoagulação dose profilática. Já o desfecho de segurança, sangramento maior ou clinicamente relevante, foi mais presente no grupo de anticoagulação plena (8% vs. 2%, p=0,001).
Que lições podemos tirar disso?
A principal é de que anticoagulação em dose plena não deve ser usada para todo paciente hospitalizado com Covid-19. Só isso já seria suficiente para mudar o tratamento de milhões de pacientes, incluindo dezenas da minha própria instituição (e provavelmente da sua). Mas as lições extrapolam os resultados.
- Primeiro, não podemos nos deixar levar pela manchete de que “pacientes internados com Covid-19 não devem ser anticoagulados”. Pacientes com indicação de usar um anticoagulante devem, sim, ser anticoagulados. A medicina de manchete acontece, e esse reforço é necessário.
- Desfechos ordinais apresentam mais informação, aumentam o poder do estudo, e trazem hierarquias relevantes (de que morte é pior do que hospitalização, por exemplo). Eles estão vindo com mais força. Temos que aprender a interpretá-los.
- Respostas genéricas jamais abrangem todas as situações, e a resposta de um estudo nunca vai ser a definitiva para todos os pacientes. Aguardamos a publicação final conjunta dos grupos REMAP-CAP, ACTIV-4a e ATTACC, cujo artigo preliminar sinalizou efeito favorável ao anticoagulante em dose plena para pacientes internados com Covid-19 moderada, para aprimorar nosso conhecimento sobre a doença. Mas penso que, de qualquer forma, essa junção de 3 estudos menores e heterogêneos dificilmente suplantaria o sólido resultado global do ACTION.
- O estudo ACTION reafirma que ensaios clínicos são a única forma consistente de encontrarmos respostas sobre o que funciona para tratar uma doença.
Por fim, fica a lição de que nada é atingido sem trabalho duro. Parabéns aos colegas do grupo Coalizão que, ao lado de gigantes globais como RECOVERY e SOLIDARITY, vêm refinando o tratamento dos pacientes com Covid-19 ao redor do mundo.
Referência:
- Lopes RD, Silva PGM de B e, Furtado RHM, Macedo AVS, Bronhara B, Damiani LP, et al. Therapeutic versus prophylactic anticoagulation for patients admitted to hospital with COVID-19 and elevated D-dimer concentration (ACTION): an open-label, multicentre, randomised, controlled trial. The Lancet [Internet]. 2021 Jun 4 [cited 2021 Jun 4];0(0). Available from: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)01203-4/abstract
#ANTICOAGULAÇÃO #COVID19